Já faz algum tempo. Semanas,
meses, anos, não sei, perdi essa noção. Vago por essas paredes desde aquele
dia. Onde aquelas crianças brincaram com nós. Desde então, estou aqui, preso,
carregando a mesma foice que me deixou desse jeito. Olho pela janela. Já é dia
novamente. Mas quando que a noite deixou de ser dia? Vai saber.
Tem
um carro parado na frente da casa. Parece que alguém está se mudando pra cá. Um
casal, pelo que posso ver. Eles parecem bem felizes. Ah, não importa.
Anoiteceu.
Acho que não vi o tempo passar. Ou talvez seja assim que o tempo passe para os
mortos. Enfim. Parado no porão, escuto os passos e as risadas dos dois. Isso me
incomoda. Eles têm de ficar quietos.
Subo
lentamente as escadas, arrastando a foice ruidosamente. As vozes da sala
silenciaram. Um clima de tensão parecia tomar a casa. Medo. E eu gostava disso.
O medo deles me fortalecia.
Abro
a porta do porão violentamente. Eles deram um pulo no sofá, mas ainda assim,
não me viram. Começam a olhar para os lados, tentando entender o que estava
acontecendo. Mas não conseguem. Balbuciam algo como “foi o vento” e voltam a
dar risada, tentando quebrar a tensão no ar.
Aproximo-me
deles. A mulher era extremamente bela, com longos cabelos negros e traços bem
definidos. Não me dei nem ao trabalho de prestar atenção nele, ela havia
chamado minha atenção. Como seria provar do medo dela? Hmmm, a tentação é bem
forte.
Minha
presença ao redor dela fê-la arrepiar-se. Ela estava me sentindo, sabia que tinha algo
errado. Continuava a olhar para os lados, tentando procurar de onde vinha essa “sensação”.
Mas de nada adianta, bela dama.
Eles
decidem por sair da sala. Andam silenciosamente até o quarto, mas o medo dos
dois é quase palpável. Sobem as escadas, e entram no quarto, o mesmo que
aqueles pirralhos...
Paro
em frente à porta. Uma segunda foice está dentro do quarto, junto com eles. Mas
ela parece se mover por vontade própria. Move-se lentamente em direção à cama
onde eles estão deitados.
-
Mas quem ousa... – digo pra mim mesmo.
-
Ué, Cris, esqueceu de mim? – uma voz feminina diz, ao lado da foice,
materializando-se.
-
Como poderia, sua vadia? – entro no quarto, com a foice em punho. – Já que por
sua causa, Aline, estou preso nessa merda de casa.
-
Ora, calma, calma. – ela disse, colocando as mãos em frente ao corpo. – Não vim
aqui pra lutar com você. Até porque, por favor né, eu também estou presa aqui.
Vim aqui por outro motivo.
-
Então? – disse, ainda em guarda.
-
Bom, percebo que você já notou esses dois aqui. – ela disse, apontando para a
cama. – E também percebo que você já entendeu que quanto mais medo eles
sentirem, mais forte você fica. Então, proponho um pequeno joguinho.
-
Jogo?
-
Quem de nós vai assustá-los mais? Ou melhor, quem vai convencê-lo de
aceitá-las? – ela disse, apontando para sua foice.
-
Hmm... Parece divertido...
-
Ok então. – ela pegou a foice e arremessou-a contra a janela, quebrando-a. Instantaneamente,
um vendaval invadiu o quarto. Os dois saíram rapidamente da cama, indo em
direção à porta. Mas eles não iam sair daqui. Não com vida. Parei em frente à
porta, deixando apenas ele passar. Quando ela passou ao meu lado, agarrei-a e
joguei-a com força na parede do quarto, usando o vento que Aline havia criado
para prendê-la.
- Eu não consigo me
soltar! Anda, me ajuda! Me tira daqui! – ela gritava, ainda presa. O idiota ainda tentou
entrar novamente no quarto, mas Aline o impediu, prendendo-o na parede do
corredor.
-
Eu acho que não, bela dama. – sussurrei em seu ouvido. Ela silenciou-se,
fechando os olhos, congelada de medo.
- Bela dama? Cara, você morreu e
virou o que? Um velho antiquado? – Aline disse, ironizando.
- Não se intrometa, vaca. – disse,
devolvendo o insulto. – Agora, bela dama, – voltei a sussurrar no ouvido dela –
você vai ficar bem quietinha aí, enquanto damos um fim nesse idiota. – ela abriu
os olhos e voltou a gritar, dessa vez, o nome dele.
- Então, eu primeiro? – Aline perguntou,
andando em direção ao corredor. – Então amigão, - ela disse, dirigindo-se a ele,
que até agora estava gritando por sua amada. – você tem uma chance. Ou eu mato
sua patética namoradinha bem lentamente, arrancando pedaço por pedaço dela, ou
você o faz.
-
Que merda é essa?! Quem é você?! – ele gritava. – Cadê você?! Anda, apareça!
- Não se faça de idiota, você me
ouviu. – dessa vez, ele silenciou. Parece que agora, ele estava vendo-a. –
Sabe, essa foice aqui está tão sedenta por sangue... Talvez sua namorada vá
servir. E sabe, - ela ficou a meio centímetro dele – eu estou um pouquinho
sádica hoje. Torturar essa vadia até a morte vai ser uma coisa muito prazerosa.
– ele arregalou os olhos e começou a se bater novamente na parede,
desesperadamente tentando se soltar.
- Não, me solta! Eu não vou deixar isso acontecer! – ele voltou a
gritar. A bela dama havia parado de gritar e de se bater. Parece que ela tinha
desistido.
- Então, você pode impedir isso.
Mate-a primeiro. Aceite essa foice e acabe com ela. – ele continuava a gritar,
nem prestando atenção no que Aline dizia.
- Bom, minha vez. – disse, me
aproximando dela e ignorando o que Aline dizia. – Então, bela dama. Ele não vai
sair daqui com vida. Mas eu quero lhe perguntar uma coisa. Você o ama o
bastante pra não deixá-lo sofrer?
-
Eu... eu... – ela gaguejava, em prantos. - Eu não sei! Eu só quero sair daqui... – a voz dela começou a sumir.
- Você não vai sair daqui. A menos
que escolha matá-lo e se salvar. Caso contrário, eu e minha “amiga” teremos o
maior prazer de torturar suas almas até que vocês não aguentem mais.
-
Mas... Como... Eu... – ela apenas sussurrava.
- Não se preocupe. Você só precisa
me dizer sim. Então, essa foice irá lhe pertencer. E será com ela que você irá
se libertar.
- Eu... – ela continuava a chorar. Porém, ela me olhou pela primeira
vez, e me respondeu. – Sim...
- Muito bem então. – peguei a mão
dela e coloquei a foice na mesma. Ela acabou se soltando da parede sem muita
dificuldade, mas seus olhos já entregavam o que tinha acontecido. Sua alma não
estava mais no corpo. Ela estava morta.
A
casca, agora dominada pela foice, agradeceu-me, e saiu do quarto, em direção ao
corredor. Segui-a, e vi que Aline não estava mais segurando a sua foice também,
e que o idiota do namorado da bela dama também estava sem sua alma.
-
Bom, acho que nós dois conseguimos. – Aline disse, dando as costas para os
dois. – Vamos, é hora de irmos.
-
Irmos? Pra onde? – perguntei, observando os dois corpos sem alma parados, ambos
com a foice em punho, em posição de ataque.
-
Essa casa não nos pertence mais. Agora, ela pertence aos dois. Você não
lembra? Temos uma dívida com aquelas
crianças. Vamos achá-las. Está na hora de devolver o “favor”. – ela deu-me as
costas novamente, e começou a descer as escadas. Ela estava certa. Aquelas
crianças fizeram isso conosco. E elas iam pagar. Caminhei em direção à escada,
escutando a doce melodia das foices chocando-se uma contra a outra, cortando o
ar em direção ao corpo um do outro, alimentando sua sede... De sangue...