terça-feira, 25 de outubro de 2011

Foice


                Já faz algum tempo. Semanas, meses, anos, não sei, perdi essa noção. Vago por essas paredes desde aquele dia. Onde aquelas crianças brincaram com nós. Desde então, estou aqui, preso, carregando a mesma foice que me deixou desse jeito. Olho pela janela. Já é dia novamente. Mas quando que a noite deixou de ser dia? Vai saber.

Tem um carro parado na frente da casa. Parece que alguém está se mudando pra cá. Um casal, pelo que posso ver. Eles parecem bem felizes. Ah, não importa.

Anoiteceu. Acho que não vi o tempo passar. Ou talvez seja assim que o tempo passe para os mortos. Enfim. Parado no porão, escuto os passos e as risadas dos dois. Isso me incomoda. Eles têm de ficar quietos.

Subo lentamente as escadas, arrastando a foice ruidosamente. As vozes da sala silenciaram. Um clima de tensão parecia tomar a casa. Medo. E eu gostava disso. O medo deles me fortalecia.

Abro a porta do porão violentamente. Eles deram um pulo no sofá, mas ainda assim, não me viram. Começam a olhar para os lados, tentando entender o que estava acontecendo. Mas não conseguem. Balbuciam algo como “foi o vento” e voltam a dar risada, tentando quebrar a tensão no ar.

Aproximo-me deles. A mulher era extremamente bela, com longos cabelos negros e traços bem definidos. Não me dei nem ao trabalho de prestar atenção nele, ela havia chamado minha atenção. Como seria provar do medo dela? Hmmm, a tentação é bem forte.

Minha presença ao redor dela fê-la arrepiar-se.  Ela estava me sentindo, sabia que tinha algo errado. Continuava a olhar para os lados, tentando procurar de onde vinha essa “sensação”. Mas de nada adianta, bela dama.

Eles decidem por sair da sala. Andam silenciosamente até o quarto, mas o medo dos dois é quase palpável. Sobem as escadas, e entram no quarto, o mesmo que aqueles pirralhos...

Paro em frente à porta. Uma segunda foice está dentro do quarto, junto com eles. Mas ela parece se mover por vontade própria. Move-se lentamente em direção à cama onde eles estão deitados.

- Mas quem ousa... – digo pra mim mesmo.

- Ué, Cris, esqueceu de mim? – uma voz feminina diz, ao lado da foice, materializando-se.

- Como poderia, sua vadia? – entro no quarto, com a foice em punho. – Já que por sua causa, Aline, estou preso nessa merda de casa.

- Ora, calma, calma. – ela disse, colocando as mãos em frente ao corpo. – Não vim aqui pra lutar com você. Até porque, por favor né, eu também estou presa aqui. Vim aqui por outro motivo.

- Então? – disse, ainda em guarda.

- Bom, percebo que você já notou esses dois aqui. – ela disse, apontando para a cama. – E também percebo que você já entendeu que quanto mais medo eles sentirem, mais forte você fica. Então, proponho um pequeno joguinho.

- Jogo?

- Quem de nós vai assustá-los mais? Ou melhor, quem vai convencê-lo de aceitá-las? – ela disse, apontando para sua foice.

- Hmm... Parece divertido...

- Ok então. – ela pegou a foice e arremessou-a contra a janela, quebrando-a. Instantaneamente, um vendaval invadiu o quarto. Os dois saíram rapidamente da cama, indo em direção à porta. Mas eles não iam sair daqui. Não com vida. Parei em frente à porta, deixando apenas ele passar. Quando ela passou ao meu lado, agarrei-a e joguei-a com força na parede do quarto, usando o vento que Aline havia criado para prendê-la.

- Eu não consigo me soltar! Anda, me ajuda! Me tira daqui! – ela gritava, ainda presa. O idiota ainda tentou entrar novamente no quarto, mas Aline o impediu, prendendo-o na parede do corredor.

- Eu acho que não, bela dama. – sussurrei em seu ouvido. Ela silenciou-se, fechando os olhos, congelada de medo.

            - Bela dama? Cara, você morreu e virou o que? Um velho antiquado? – Aline disse, ironizando.

            - Não se intrometa, vaca. – disse, devolvendo o insulto. – Agora, bela dama, – voltei a sussurrar no ouvido dela – você vai ficar bem quietinha aí, enquanto damos um fim nesse idiota. – ela abriu os olhos e voltou a gritar, dessa vez, o nome dele.

            - Então, eu primeiro? – Aline perguntou, andando em direção ao corredor. – Então amigão, - ela disse, dirigindo-se a ele, que até agora estava gritando por sua amada. – você tem uma chance. Ou eu mato sua patética namoradinha bem lentamente, arrancando pedaço por pedaço dela, ou você o faz.

            - Que merda é essa?! Quem é você?! – ele gritava. – Cadê você?! Anda, apareça!

            - Não se faça de idiota, você me ouviu. – dessa vez, ele silenciou. Parece que agora, ele estava vendo-a. – Sabe, essa foice aqui está tão sedenta por sangue... Talvez sua namorada vá servir. E sabe, - ela ficou a meio centímetro dele – eu estou um pouquinho sádica hoje. Torturar essa vadia até a morte vai ser uma coisa muito prazerosa. – ele arregalou os olhos e começou a se bater novamente na parede, desesperadamente tentando se soltar.

            - Não, me solta! Eu não vou deixar isso acontecer! – ele voltou a gritar. A bela dama havia parado de gritar e de se bater. Parece que ela tinha desistido.

            - Então, você pode impedir isso. Mate-a primeiro. Aceite essa foice e acabe com ela. – ele continuava a gritar, nem prestando atenção no que Aline dizia.

            - Bom, minha vez. – disse, me aproximando dela e ignorando o que Aline dizia. – Então, bela dama. Ele não vai sair daqui com vida. Mas eu quero lhe perguntar uma coisa. Você o ama o bastante pra não deixá-lo sofrer?

            - Eu... eu... – ela gaguejava, em prantos. - Eu não sei! Eu só quero sair daqui...  – a voz dela começou a sumir.

            - Você não vai sair daqui. A menos que escolha matá-lo e se salvar. Caso contrário, eu e minha “amiga” teremos o maior prazer de torturar suas almas até que vocês não aguentem mais.

            - Mas... Como... Eu... – ela apenas sussurrava.

            - Não se preocupe. Você só precisa me dizer sim. Então, essa foice irá lhe pertencer. E será com ela que você irá se libertar.

            - Eu... – ela continuava a chorar. Porém, ela me olhou pela primeira vez, e me respondeu. – Sim...

            - Muito bem então. – peguei a mão dela e coloquei a foice na mesma. Ela acabou se soltando da parede sem muita dificuldade, mas seus olhos já entregavam o que tinha acontecido. Sua alma não estava mais no corpo. Ela estava morta.

A casca, agora dominada pela foice, agradeceu-me, e saiu do quarto, em direção ao corredor. Segui-a, e vi que Aline não estava mais segurando a sua foice também, e que o idiota do namorado da bela dama também estava sem sua alma.

- Bom, acho que nós dois conseguimos. – Aline disse, dando as costas para os dois. – Vamos, é hora de irmos.

- Irmos? Pra onde? – perguntei, observando os dois corpos sem alma parados, ambos com a foice em punho, em posição de ataque.

- Essa casa não nos pertence mais. Agora, ela pertence aos dois. Você não lembra?  Temos uma dívida com aquelas crianças. Vamos achá-las. Está na hora de devolver o “favor”. – ela deu-me as costas novamente, e começou a descer as escadas. Ela estava certa. Aquelas crianças fizeram isso conosco. E elas iam pagar. Caminhei em direção à escada, escutando a doce melodia das foices chocando-se uma contra a outra, cortando o ar em direção ao corpo um do outro, alimentando sua sede... De sangue...

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A casa


- Digamos que eu aceite esse desafio. O que eu vou ganhar em troca, Aline? – perguntei.

- Uma noite inteira comigo, com tudo que você quiser. – ela respondeu, com um olhar malicioso na cara.

- Hmmm... Interessante. Ok, eu topo. – respondi.

O desafio em questão era passar uma noite acordado na casa de um amigo dela. Aparentemente, a casa era assombrada e a família estava de mudança essa semana. Na verdade, ela já havia saído de lá, só deixou as coisas pra trás até conseguir tirá-las de lá. E claro, deixou alguém com as chaves da casa pra cuidá-la até então, que no caso, eram os pais de Aline. Pegar a chave deles sem que eles soubessem foi fácil, segundo ela.

Enfim, saímos da casa dela e fomos para a casa em questão. Era estranho acreditar que essa casa era assombrada. Ela tinha dois andares, um jardim bem cuidado e um acabamento impecável, toda em branco. Estava meio preocupado que nos vissem entrando na casa, mas já era noite, e ninguém prestou atenção em nós dois. Por dentro, a casa era mais bonita ainda do que por fora. Uma sala ampla, mobiliada com moveis bem antigos, ligava a cozinha com a escadaria próxima à porta, que levava aos quartos.

- Tá, vai ficar com essa cara olhando pra mobília ou vai se concentrar numa coisa um pouco... Melhor? – ela disse, andando sedutoramente para o sofá da sala.

- Não precisa chamar duas vezes. – disse, indo até o sofá e agarrando ela. Mas um barulho estranho nos impediu de continuar o que tinha mal começado. Era como se alguém estivesse subindo e descendo as escadas. – Cara, tu me disse que não tinha ninguém morando aqui.

- Mas não tem. – ela parecia desconfortável com isso.

- Tá bom então, vamos lá ver o que é isso. – disse, me levantando e indo em direção à escada. Mas ela continuou sentada. – Que foi, você não vem?

- Acho melhor não. Vai lá ver o que é, eu espero você aqui. – ela respondeu, ainda sem se levantar.

- Ah claro, tu quer ficar sozinha numa casa que você diz ser “assombrada”? Tá bom então, você que sabe. – disse, ironizando. Ela pareceu pensar e, relutante, levantou-se do sofá e veio até onde eu estava. Vai entender.

Enfim, paramos em frente à escada, mas não havia ninguém ali. Subimos as escadas e fomos abrindo um por um dos quartos, mas ainda assim, não havia nada.

- Eu não tô gostando disso cara. – ela disse, parecendo um pouco assustada.

- Ei, a idéia não foi minha. Você que quis vir pra cá. Mas, peraí, por que mesmo você queria vir pra cá? – perguntei, olhando para ela.

- Bom, já que não consigo passar nem dez minutos sozinha com você... – ela pareceu esquecer que estava assustada até 15 segundos atrás. – Eu acho que precisava de uma desculpa, não? – ela me abraçou e começou a me beijar novamente. – Então, o que você acha de... – ela foi interrompida com uma forte rajada de vento, vinda da porta. Ela abriu com muita violência, soltando uma rajada tão forte que quase nos derrubou. Porém, logo em seguida, ela fechou com a mesma força que abriu, e o vento cessou. Mas o barulho não. Parecia que cada uma das portas dos quartos estava abrindo e fechando do mesmo jeito. Agora, certo que tinha alguma merda enorme acontecendo aqui, andei devagar até a porta e tentei abri-la, sem sucesso. Alguma coisa tinha nos trancado lá dentro.

- Cris, o que tá acontecendo? – Aline parecia realmente assustada agora.

- Não sei Aline, mas nós não podemos ficar aqui dentro. Temos que tentar abrir essa porta e sair daqui. – tentei novamente abrir a porta, e Aline veio me ajudar, mas ainda assim, a porta não abria, e o barulho das portas abrindo e fechando lá fora aumentava de intensidade, como se elas estivessem abrindo e fechando cada vez mais rápido. Aline começou a chorar, e ficou agachada na porta, soluçando.

Abaixei-me e fiquei ao lado dela, esperando que esse barulho infernal acabasse. Passou-se um longo tempo até que isso acontecesse. Quando finalmente parou, levantei-me e tentei abrir a porta novamente, dessa vez, conseguindo. Saímos do quarto e vimos uma coisa diferente no corredor. Das quatro portas que havia antes, duas não existiam mais, eram apenas uma extensão da parede, e uma das portas dos outros dois quartos estava aberta. Alguma coisa estava me dizendo que devíamos entrar ali dentro. Caminhei vagarosamente até ela, com Aline atrás de mim.

Entramos no quarto, e ele estava da mesma forma que estava antes, cheio de decorações de menina e alguns brinquedos jogados no chão. Fui até o fim do quarto, mas nada parecia diferente, exceto por um em particular. Uma das bonecas que estava em cima da cama parecia olhar para nós dois com um sorriso irônico no rosto. Aquilo me causou um profundo arrepio. Aline, que desde que começou a chorar no outro quarto não havia dito nada, começou a se afastar com uma cara de pavor, apontando para alguma coisa atrás de mim.

- Aline, o que diabos você... – senti um frio estranho vindo dos meus pés, e foi quando vi o que ela estava tentando me avisar. Havia uma sombra negra encobrindo a parede toda, e ela estava começando a me cercar. Apavorado, corri pra longe da parede e saí do quarto, com Aline me seguindo de perto. Descemos as escadas e abrimos a porta, mas a visão que tivemos foi aterradora. Três crianças esperavam por nós em frente à porta, cada uma carregando uma foice banhada em sangue. Tentei fechar a porta e correr delas, mas as três levantaram as mãos em nossa direção e alguma coisa nos arremessou contra a parede, prendendo-nos. Gritei, me debati, fiz tudo que podia, mas não conseguia me soltar. Aline começou a chorar desesperadamente, também tentando, sem sucesso, se soltar.

As três crianças entraram na casa, aproximando-se de nós. A primeira, uma menina com longos cabelos negros, parou em frente à Aline e sussurrou alguma coisa que eu não consegui ouvir, mas que fez Aline silenciar na mesma hora. Ela ficou olhando fixamente para a criança, até que o que tivesse prendendo-a a soltasse, fazendo-a cair no chão. Ela se levantou, agradeceu a criança e pegou a foice dela, olhando com um olhar perdido para mim.

A segunda criança, um menino franzino com cabelos cacheados, andou até a minha frente e ficou parado, observando-me.

- Ela vai te matar, você sabia?  - a voz dele ecoava na minha cabeça, parecendo se divertir com a situação. – Você pode escolher morrer pelas mãos dela ou aceitar minha foice e matá-la.

- Eu nunca iria matar outra pessoa! Solte-nos e deixe-nos ir embora! – gritei.

- Ah, por favor. Não me diga que tem medo dessa garotinha? – ele disse, apontando para a menina ao lado de Aline. – Agora, ela está dentro da sua amiga. A única chance que você tem de sobreviver é matando-a.

- Eu... Eu... – Aline começava a se aproximar de mim.

- Ela está chegando. Não vou impedi-la, a menos que você queira lutar com ela. Então?

- Eu não vou lutar contra ela. - disse, soando mais decidido do que parecia.

- Que seja então. – ele deu as costas e saiu, ficando ao lado da terceira criança, uma menina com longos cabelos cacheados, que lembravam os dele.

Aline parou na minha frente, com a foice em punho. Seus olhos estavam brancos, como se tivessem perdido a cor. Tentei novamente me soltar, gritar pelo nome dela. Mas ela parecia não me ouvir. Aquela "criança" havia dominado-a. Enquanto isso, as três crianças estavam rindo, aumentando ainda mais meu ódio. Comecei a chorar, sem esperança. Ela havia partido. E me levaria junto com ela.


Ela levantou a foice sobre a cabeça, e a última coisa que vi foram as três crianças dando as costas para nós e indo embora de mãos dadas, cantando alguma música enquanto a foice caía sobre meu corpo, ceifando-me a vida...


            

terça-feira, 4 de outubro de 2011

A Casa Abandonada


            Meu trabalho já me levou a muitos lugares. Lugares que as pessoas não iriam por vontade própria. Lugares que até eu me arrependo de ter ido.

            Em uma das minhas longas caminhadas, encontrei uma casa perdida, numa área onde poucas pessoas moravam. Passando pelas outras casas ao redor, ninguém havia falado nada sobre ela, mas, por algum motivo, todos que nos atenderam ficavam olhando fixamente àquela casa. Quando questionados, eles acabavam por nos mandar embora sem falar nada. Mas, era nosso trabalho passar por lá.

            A casa, além de vazia, estava totalmente depenada, apenas um amontoado de paredes com um teto sobre ela, sem janelas, portas, quase sem divisórias dentro da casa. Entramos nela, eu e meus colegas. Enquanto eles passavam pelo lado da casa em direção aos fundos, eu resolvi passar por dentro da casa, indo também para os fundos.

            Mas me detive enquanto estava lá dentro. Primeiro, apenas senti. Tinha alguma coisa me observando. Meus colegas estavam gritando para que eu fosse até eles, mas não estava ouvindo-os. O clima daquela casa estava quase me sufocando, tornando meu caminhar lento e pesado, e quanto mais caminhava em direção à porta dos fundos, mais me sentia observado.

            Tentei resistir a olhar para trás. Mas não consegui. Dei as costas à porta e voltei-me para o que era antes um quarto (era a única coisa que ainda estava dividida naquela casa). Mas, estranhamente, nada havia. Apenas o mesmo vazio do resto da casa.

            Um pouco mais aliviado, voltei-me novamente para a porta dos fundos. Foi quando a vi. Uma menina, carregando um pequeno ursinho de pelúcia, olhando fixamente para mim. Seu olhar carregava uma energia pesada, a ponto de derrubar até mesmo o que restava daquela casa em pedaços. Minha mente gritava para que saísse correndo dali, mas eu estava totalmente paralisado.

            Ela começou a andar vagarosamente em minha direção. Quanto mais ela se aproximava, mais difícil ficava de respirar. A luz vinda da porta dos fundos desapareceu, deixando a casa as escuras. Enquanto tentava pensar numa forma de fugir daquela escuridão, um clarão parecido com um raio iluminou a casa novamente. Junto com a luz, a surpresa. As paredes da casa estavam cobertas de estranhas runas, todas desenhadas em sangue. No meio da casa, uma criança estava presa a um altar.  Mesmo sem conseguir vê-la direito, eu sabia quem era.

            Desesperado, tentei correr, mas a casa voltara à escuridão. Um novo clarão iluminou a casa, mas a criança não estava mais presa no altar. Aproveitando os poucos momentos de luz que tinha, olhei para todos os lados, procurando por ela, mas ela não estava em lugar algum. Instintivamente, corri em direção de onde a porta deveria estar.  Mas bati em alguma coisa pequena antes de chegar nela. Um terceiro clarão me mostrou o que era. Era ela, coberta de sangue, com um punhal dourado nas mãos, olhando maliciosamente para mim. A luz sumiu, mas com ela, a dor apareceu. Senti o metal frio me perfurando uma, duas, várias vezes, até que...

            - Cara, o que aconteceu? – meu colega olhava fixamente para mim, com nossa companheira um pouco atrás dele.

            - Eu... – eu estava... deitado? – Onde eu estou?

            - Você está na casa que entramos oras. Enquanto nós demos a volta, você resolveu passar por dentro da casa, e como você demorou a nos alcançar, viemos atrás de você, e o encontramos desmaiado no chão. Vamos, eu te ajudo a levantar.

            Ele me ajudou a levantar e saímos dali. Não quis contar-lhe o que tinha visto, porque... Bom, ele não iria acreditar. Mesmo assim, receoso, voltei meu olhar uma última vez para a casa. Ela parecia exatamente a mesma de antes de entrarmos, mas havia uma coisa jogada no chão perto à porta da frente: um pequeno ursinho de pelúcia...
           
           
           
            

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Ok...

Revivendo dos mortos...



Bom, como comentei no comentário da minha outra história. Tanto eu quanto o outro dono do blog tínhamos abandonado o blog (seja por falta de ideias, seja por falta de vontade). Mas parece que ainda há pessoas vindo visitá-lo. Portanto, não acho justo deixar ele parado aqui por nada.

Mas confesso que por enquanto, não consigo me ver criando histórias de terror (ainda bem que meus pesadelos se tornaram mais suportáveis com o tempo, rs), pelo menos, não de minha autoria.

Abro algumas possibilidade a quem se interessar.

1: Quer compartilhar sua história, mesmo que você não saiba criar um conto? Diga-me qual é ela, e eu crio a história a colocar aqui, creditando a pessoa.

2: Tem seus contos? Converse comigo, eu irei abrir aqui a possibilidade de novos bloggers se juntarem ao blog e continuarem nosso trabalho de onde parou.

3: Quer apenas conversar sobre? Adicionem meu msn (que vou postar mais abaixo).

4: Na verdade, esse é um pedido. Eu não faço a menor ideia de onde foi tirada essa foto do topo do blog, mas preciso de uma parecida pra criar a nova "capa" do blog. Se alguém achar ela, poste nos comentários, por favor.

Bom, é isso. Add me se quiserem. felipe_elix@hotmail.com

Ps: eu, pelo menos, não considerei como história de terror, mas fiz uma outra história alguns dias atrás. Postei-a abaixo desse post. Leiam e vejam o que acham.

                Toda vez que olho àquele lugar, todas aquelas memórias voltam à mente. Memórias confusas, desconexas, mas todas com algo em comum: ânsia por sangue. Vingança. (...)

            (...) Havia desistido daquela vida sem sentido por ela, mas eu sabia que alguma hora meus fantasmas do passado voltariam pra me pegar. (...)

            (...) Naquela noite, enquanto voltávamos para casa, notei alguém nos seguindo. Tentei não alarmá-la, mas fiquei a observar nosso perseguidor durante o caminho. Sabia que se ele tentasse nos atacar, iria encontrar seu fim na lâmina de minha espada. (...)

            (...) Ela parecia tranqüila. Estava gostando do passeio floresta adentro. Dizia que quando chegássemos, iria retribuir a gentileza que estava lhe prestando essa noite, que minha companhia era tudo que ela precisava para ser feliz. (...)

            (...) Não havia notado o resto deles. Apenas quando chegamos à clareira no meio da floresta. Eles haviam nos cercado, mas eu podia vencê-los. Se estivesse sozinho. Seria perigoso para ela ficar no meio da batalha. (...)

            (...) Um por um, eles avançaram contra mim. Desembainhei minha espada e me mantive esperando a chegada. Um, dois, três cortes. Três corpos. Minha sede de sangue estava voltando, mesmo depois de tanto suprimi-la. (...)

            (...) Quando me dei conta novamente, minha espada estava banhada em sangue. Ao menos uma dúzia de corpos jazia ao chão, mas ao invés de estar assustada, sua expressão era tranqüila. (...)

            (...) Abracei-a, sussurrando que estava tudo bem e... A dor. Por tanto tempo, desconheci o que era. Mas o metal daquela adaga perfurando meu peito me lembrou disso. (...)

            (...) “Patético”, disse, carregando um sorriso malicioso. “Eu esperava mais deles, e de você também, mas todos serviram ao seu propósito. Agora, é sua hora de morrer. Aproveite seus últimos suspiros, idiota.” (...)

            (...) A dor era suportável, mas estava ficando fraco. Estava perdendo sangue demais. E havia alguma coisa errada, parecia que alguma coisa estava me queimando por dentro, circulando dentro de meu peito. Sem forças, caí. Traído por quem jurei defender. Amaldiçoando minha decisão. (...)

            (...) Não sei quanto tempo passou. Semanas, meses. Estava no escuro, sem ver, sem sentir, sem ar, sem chão. Era o nada. (...)

            (...) Acordei numa pequena cabana, onde uma velha senhora estava numa cadeira, fitando-me. “Finalmente se recuperou”, ela disse. Disse que havia me encontrado quase sem vida naquele lugar onde... (...)

            (...) Ela havia salvado minha vida. O veneno que banhava a adaga teria me matado mesmo que não fosse perfurado como fui. Ficou meses tentando retirar o veneno, esperando que um dia eu recobrasse a consciência. Eu o fiz. Mas só por uma razão. Não poderia descansar em paz até encontrá-la de novo. E fazê-la pagar. (...)

            (...) Muitos anos se passaram. Vivi nas sombras novamente, esperando pelo dia em que lhe encontraria.  E a encontrei. Observava-a cautelosamente. Seus olhos não tinham a mesma confiança da última vez. Agora, neles havia o mais profundo medo. De minha lâmina. De minha vontade. Do fantasma, sedento de sangue, que voltou para cobrar sua dívida...

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O espírito do banheiro

Em um antigo internato para meninas, de tempos em tempos histórias “vividas” por internas mais antigas vinham à tona. A maior parte delas era apenas invenção. Mas esta que vou relatar é a única história verídica de todas as que escutei. Devia ter 14 anos na época. Estávamos na sala de aula, no intervalo, em um dia que parecia apenas mais um qualquer. Foi quando Amanda, uma das alunas que estavam para sair do internato, por já estar fazendo 18 anos, chamou todas para um canto da sala, dizendo que tinha uma história para contar. Percebendo do que se tratava, todas foram ao seu encontro.
Eu permaneci sentada em meu lugar, pois já estava cansada de ouvir tanta baboseira. Percebendo que eu era a única que não fui ouvir sua história, Amanda veio para perto de mim, seguida de todas as outras meninas.
- Ué Aline, não quer ouvir o que tenho para contar? – perguntou ela.
- Desculpe, mas não, obrigada. Já estou cansada dessas histórias sem cabimento.
- Sem cabimento? Dessa vez, a história é verdadeira.
- Como todas as outras que também eram... – repliquei.
- Duvida? Então escute e tire suas próprias conclusões, pois o corpo ainda está aqui.
- Corpo? – as meninas perguntaram em coro.
Ignorando o coro atrás dela e focando seus olhos verdes em mim, ela começou:
“Essa história aconteceu há alguns anos. Foi no tempo em que eu entrei aqui. Uma menina, Alice, desrespeitava e às vezes batia nas senhoras que cuidam do internato. Ela pensava que tudo o que fazia passaria impune. Mas não passou. Certo dia, a diretora se cansou das atitudes dela. Ela pegou a menina, que estava na sala de aula, e a trancou no banheiro da mesma, dizendo que só sairia dali quando aprendesse a lição. Ela gritou incessantemente pedindo ajuda, mas a diretora impediu todas que tentaram ajudá-la. Eu mesma tentei, mas ela disse que esse era o castigo que ela merecia por maltratar as pessoas que ‘cuidavam’ dela.”
“Todas nós ficamos na porta do banheiro esperando a diretora soltá-la. Mas ela não o fazia. A noite chegou, e todas foram obrigadas a voltar para os dormitórios. Durante a noite, ouvi um barulho que parecia um trovão ecoar pelos corredores do internato. Como não havia sinal de chuva vindo, levantei e procurei de onde havia saído tal barulho. Enquanto andava pelos corredores escuros, o barulho ecoou novamente, vindo da nossa sala de aula. Devagar, fui até lá e vi a porta do banheiro aberta, e ninguém a cuidá-la. Talvez Alice tivesse escapado, ou então...”
“Cautelosamente, entrei no banheiro. Mas não vi ninguém ali, nem mesmo Alice. Quando estava para sair do banheiro, algo começou a escorrer da porta da última cabine. Mais apavorada do que nunca, andei até lá. Mas foi aí que vi algo que nunca queria ter visto. Alice, sentada no vaso do banheiro, com um buraco na cabeça e outro no peito. Alguém havia entrado ali e atirado nela, intencionalmente.”
“Apavorada, saí do banheiro, contendo um grito de desespero. Quando corri em direção aos quartos, vi a diretora saindo depressa do banheiro dos professores, carregando um objeto estranho, prateado. Tentando controlar meu nervosismo, segui-a, até sua sala. Ela deixara a porta entreaberta, então pude observá-la guardar o objeto que, sob a luz da lareira, pude distinguir o que era: uma arma, manchada de sangue.”
“Atordoada, voltei ao meu quarto, sem sabe o que fazer. Entregar a diretora a policia? Impossível, pois ela iria me pegar antes que eu o fizesse. Contar a alguém? Mas quem, se todas eram leais a ela? Sem resposta, resolvi tentar dormir novamente. Algumas horas depois, fui acordada por gritos incessantes. Levantei-me e fui ao único lugar de onde poderiam vir tais gritos: o banheiro de nossa sala de aula. Lá estavam várias colegas chorando pelo que viram, e a diretora, dizendo que não sabia como tamanha barbárie fora cometida. Ela mandou que todas voltassem aos seus quartos enquanto tirava o corpo de Alice dali, mas não foi o que ela fez. Eu me escondi, a fim de saber o que ela faria. A diretora simplesmente trancou o banheiro e pediu para que uma das empregadas cobrisse a porta com tábuas e o mesmo papel de parede do resto da sala, para que ele ficasse exatamente como todo o resto da parede.”
Ela parou de me encarar e foi a um canto da sala, onde rasgou o papel de parede com um pequeno canivete.
- E aqui é onde seu corpo está, preso no que um dia foi um banheiro. Pela morte que sofreu, seu espírito ainda deve estar aqui, sedento por vingança a todo e qualquer um que ousar libertá-lo.
A sala ficou muda. Todas se entreolhavam, mas ninguém soltava um suspiro sequer. Então, Amanda voltou-se novamente para mim e perguntou:
- Então Aline, minha história não é verdadeira?
Não respondi. Levantei-me e fui até onde estava. Parei em frente à porta e analisei-a. Como todo o resto da fundação do internato, as tábuas que escondiam a porta estavam podres, e apenas um chute era mais do que suficiente para quebrá-las.
- Então façamos o seguinte, Amanda: e se eu entrar nesse banheiro e provar a todas que sua “história verídica” é mais falsa do que nota de três dólares?
- Sinceramente, eu não quero que você faça isso. Já basta o terror que eu senti em olhar para ela daquele jeito. E, além disso, você pode soltar um espírito que pode tentar matar a todas nós.
- Ah, por favor, vai dizer agora que está com medo?
- Estou. E se você sabe o que é melhor para você, não faria isso.
Soltei um olhar de reprovação para Amanda. Afinal, do que poderia estar com medo, já que esse deveria ser apenas mais uma de suas balelas. Mas todas as outras meninas pareciam acreditar nela, mostrando-se apavoradas.
Cansada daquele clima, chutei as tábuas com toda minha força. Pensei que quebraria apenas elas, mas não pensei que a porta estivesse pior do que as tábuas, pois ela se quebrou junto. O odor que saiu de lá era horrível, insuportável. Mas já que havia ido até esse ponto, não voltaria atrás.
Tapando minhas narinas com a manga do uniforme, entrei no buraco. Sem iluminação, totalmente imundo e ameaçando desabar, aquilo era apenas a lembrança do que um dia foi um banheiro. A janela foi coberta com cimento, para isolar o banheiro e torná-lo desconhecido das novas internas.
Guiando-me apenas pela luz que entrava pelo buraco pelo qual entrei, procurei pouco a pouco o banheiro onde supostamente estava Alice. Quanto mais me aproximava da última cabine, mais forte o odor ficava. Quando parei em frente à cabine, não havia nada. Ela estava vazia. Enquanto estava voltando-me para a saída para comprovar o que havia dito, todas as luzes do banheiro se acenderam. Como eu havia me acostumado ao escuro dali, as luzes fizeram ardes aos meus olhos, me deixando cega por alguns instantes.
Quando voltei a enxergar novamente foi que aconteceu. Senti uma presença estranha atrás de mim. A parede do banheiro estava negra, e alguma coisa estava escorrendo da cabine onde Alice deveria estar. Indecisa e um pouco assustada, voltei-me à cabine, agora fechada. Abri-a, e tive a visão mais aterradora da minha vida. Depois de vários anos, o corpo de Alice parecia intacto, inclusive com as perfurações feitas pelas balas.
Contendo-me para não gritar e mostrar às outras que Amanda estava certa, fechei novamente a cabine, mas ela abriu-se abruptamente, ou melhor, alguém a abriu. O corpo de Alice começou a se mover lentamente em minha direção, mas corri em direção à saída. Infelizmente, ela não estava mais lá. Era como se eu tivesse voltado no tempo, e o banheiro estivesse exatamente do mesmo jeito que estava naquele dia.
Comecei a bater na porta e gritar por ajuda, mas ninguém respondia. Enquanto isso, Alice continuava a vir em minha direção. Desesperada, pensei em lutar contra ela, mas isso era impossível, pois ela era uma morta-viva e eu apenas uma menina. Quando me preparei para o final doloroso, ela simplesmente sussurrou em meu ouvido: “Obrigado...”.
Minhas lembranças daqueles momentos ali dentro começaram a voltar rápido demais, tornando-as impossíveis de controlar, fazendo-me desmaiar. Acordei algum tempo depois dentro da sala de aula, mas com uma pequena surpresa: dois corpos estavam pendurados por cordas no teto da sala: eram Amanda e a diretora. Para completar, havia um aviso no quadro, escrito em sangue: este é apenas o começo.
Apavorada, corri para fora do internato, na direção da cidade. Não queria voltar mais para lá. Depois de horas correndo solitária numa estrada deserta, avistei alguém vindo. Por causa do cansaço ocasionado por tantas horas de corrida incessante, desmaiei antes de reconhecer a pessoa.
Algumas horas depois, acordei em uma bela cama, num lugar que parecia mais um hotel de luxo.
- Então acordou, minha neta? – ele perguntou.
Não consegui esconder a felicidade em reconhecer a voz dele. Era meu avô, que viera me fazer uma visita no internato. Curioso, ele me perguntou por que eu estava correndo para a cidade. Contei-lhe toda a história, e ele pareceu acreditar em mim. Ele disse que estava indo ao internato me levar para morar com ele, pois não acreditava que meus pais tivessem me colocado num lugar daqueles. Ele também disse que não sabia onde eu estava, por isso nunca veio me ver. Na verdade, ele disse que se soubesse que eu estava lá desde o começo, já teria ido me buscar a muito tempo.
Alguns dias depois de fugir do internato, li uma notícia perturbadora no jornal: “MASSACRE EM INTERNATO”. A polícia dizia desconhecer quem e como alguém poderia ter matado mais de 40 pessoas enforcadas no mesmo dia, mas eu sabia quem era: Alice. Ela finalmente pôde se vingar.
Já faz quatro anos. Eu e meu avô saímos daquela cidade, e nos mudamos para o mais longe possível. Porém, desde aquele dia, algo está a me acompanhar. E, neste exato momento, ela pode estar aqui, ou com quem está a ler este relato...

sábado, 17 de janeiro de 2009

De Como Odeio o Natal

O calor terrível da semana trouxe uma enorme nuvem chumbo, rosnando com trovões ameaçadores sobre a cidade. Quando o vento estancasse, uma tempestade despencaria sobre a noite de Natal e isto me deixaria feliz.
Às vezes me pergunto em que momento da vida, passei a odiar o Natal. Na infância a idéia do fim de ano me excitava. Montávamos pinheiros de papel laminado, enchíamos a casa de luzes seqüenciais, namorávamos os brinquedos nas vitrines, aguardávamos a ceia, rodeados de parentes barulhentos e por incrível que pareça, fazíamos pedidos ao Papai Noel. Ainda bem que esse pesadelo ficou no passado.
Decididamente os tempos são outros. Acho que todos sabem que perpetuamos uma farsa. Ou para ser menos azedo, a maioria sabe que Jesus não nasceu no dia vinte e cinco do ano zero e sim no ano três ou quatro antes de Cristo e que, provavelmente, nunca saberemos o dia e o local exatos de seu nascimento. Isto está em qualquer revista científica, os maiores exegetas da Bíblia atestam nossa ignorância histórica a respeito de Jesus, mas o mundo finge ignorar. A data do Natal foi criação da Igreja no século IV, quando os chefões católicos decidiram associar as festas pagãs de dezembro, as Saturnias, ao nascimento do “filho de Deus”. Depois a mentira pegou e... Mas, afinal, isto não importa mais, pois a festa extrapolou suas raízes religiosas e qualquer idiota sabe no que se transformou o Natal.
Mesmo assim, é preciso desejar felicidades, repetir os rituais. É preciso até ficar deprimido, pois é Natal e há neve nos trópicos, renas voadoras e também pessoas gordas derretendo suas banhas nos shoppings, sob torturantes roupas vermelhas de veludo e barbas ridiculamente falsas. Isto para não falar no consumismo e na comilança obscena.
Mas desta vez a coisa toda parecia desandar. Havia previsões de que grandes enchentes, quedas de barreiras e falta de energia elétrica que iriam por a perder a festança. Enfim, o que se pode fazer? É da natureza do Natal criar inquietação.
Já podia imaginar as árvores de Natal esboroando-se, gorduchos de vermelho, duendes e pacotes com laços de fita, arrastados pelas torrentes. Um apagão também viria a calhar quem sabe assim as tevês se calariam por algumas horas. Tudo seria emocionante e sui generis, não fosse pelo maldito telefone, este besouro que insiste em entrar em nossos ouvidos.
Estava tudo planejado, há semanas. Conseguira vencer o Eric no cara ou coroa, usando uma moeda falsa. O otário terminou concordando em assumir a escala de serviço durante o Natal. O chefe parecia satisfeito com a solução e eu iria para as montanhas, ouvir New Order e encher a cara com os amigos, bem longe daquele espalhafato. Mas aí, o telefone tocou. Era o babaca do russo, avisando que Eric pedira as contas, pois queria passar o Natal com a família. Tentei dissuadir o dono da locadora, afinal, quem assistiria a filmes numa data como essa? O homem respondeu com aquele sotaque carregado: “há sempre os que odeiam o Natal, há os frustrados, os pais que não sabem como acalmar os filhos diante das visitas, há os solitários, os chatos e também os aficionados que não passam um feriado sem ver um filme. Natal é dinheiro, meu filho! Vamos abrir entre meio dia e duas da manhã. Pago dobrado e dou uma folga extra. Ah! Já coloquei anúncio na porta oferecendo vaga para balconista. Se aparecer alguém mande voltar depois do feriado. E não esqueça, ligue as luzes da árvore de Natal. Spasibo! Pozdrevlyayu s prazdnikom Rozhdestva.”O desgraçado do russo desligou o telefone sem dar chance para uma negativa.
Aquilo foi demais. Afinal, os russos só comemoram o Natal em janeiro. Pensei em ligar de volta e pedir as contas, mas lembrei que teria de voltar para aquele apartamento pulguento na Rua 38 e que não haveria mais cervejas e pizzas e isto seria intolerável. Ademais, seria apenas por um dia.
Quando estacionei o carro diante da loja o céu já estava bastante ameaçador. Fiquei imaginando a locadora às moscas. Poderia assistir a um bom filme e quem sabe tirar um cochilo.
Mal me instalei na poltrona e a porta se abriu, deixando entrar um grupo de crianças barulhentas que se amontoaram no fundo da loja, invadindo a saleta da seção de pornografia. Um magrelo apalermado seguia os pequenos devassos e tentava, com voz sumida e gestos patéticos, conduzi-los para a seção de desenhos animados. A turba reorientou-se, contrafeita e o magrelo dirigiu-se ao balcão. Pedi-lhe que controlasse as crianças. Ele se desculpou e explicou tratar-se de menores de um abrigo para crianças de rua. Ele, o pastor de plantão, era novo na casa e não conseguira conter aqueles pestinhas, então pensou em locar algum filme sobre o Natal.
_ Você tem “Natal Branco”?
Tentei imaginar aquela horda bárbara assistindo a um melodrama ultrapassado como aquele. Respondi que sim, mas que talvez alguma coisa mais recente agradasse os garotos.
_Quem sabe, “O Grinch”?
_Talvez, mas fico ainda com “Natal Branco” ou “O Espírito do Natal”, são filmes com mensagens cristãs.
_ Bem, a escolha é sua. Não estou bem familiarizado com estes filmes antigos, mas há vários deles na seção de clássicos, no fundo, à direita.
As crianças continuavam agitadas, desbaratando as capas dos DVD, puxando cartazes das paredes ou engalfinhando-se por conta de gostos e gêneros diferentes. Adverti novamente o pastor que tentava concentrar-se na sua busca arqueológica.
Nisto a porta se abriu novamente. Um sujeito moreno e esguio, com um turbante laranja na cabeça e uma barbicha esquisita, dirigiu-se à seção de suspense, apanhou várias capas e as trouxe até o balcão. Perguntei-lhe o nome, respondeu-me um nome indiano, impronunciável. Identifiquei o cliente no computador, era realmente indiano, um Sikh, provavelmente.
As crianças pararam de se espancar, por alguns instantes, como que hipnotizadas por aquela presença exótica. Logo em seguida retomaram as estripulias, enquanto eu tratava de registrar os filmes: Psicopata Americano, Hannibal, Colecionador de Ossos, A Cela, Funny Games, ao todo eram onze títulos sobre assassinos seriais. Acho que meu espanto ficou estampado no rosto de modo que o indiano percebeu e fechou o cenho moreno para mim. Que rosto terrível aquele! As sobrancelhas peludas juntavam-se numa curva ameaçadora, emoldurando dois olhos baços e cinzentos como os de um tubarão, os dentes também pareciam pontiagudos. Fiz um comentário nervoso, elogiando as escolhas, mas continuei sob a mira daqueles olhos implacáveis. Nisto, um trovão fez tremer as vidraças e a energia desligou-se, por breves instantes. Começara a chover. Tive que reiniciar o programa de cadastro. O homem parecia ainda mais irritado, seus dedos finos e mal tratados tamborilavam sobre o balcão. Uma das crianças aproximou-se com uma capa de filme na mão, gritando: quero este, quero este!
_Este está alugado. Escolha outro, respondi em seco.
O garoto insistiu. Os olhos do tubarão fitaram a pequena vítima. Senti o sangue gelar, mas reiniciei o cadastramento dos filmes.
Nesse instante um casal de velhos entrou na loja. Vestiam roupas elegantes, exalavam aqueles perfumes esquisitos que só os turistas gostam e falavam tão alto que imaginei serem surdos.
Conclui o cadastro dos filmes, preparei a nota de aluguel e passei-a ao tubarão indiano, mas um dos fedelhos derrubou uma pilha de capas de DVD aos pés do homem que, enfim, explodiu: Calem-se seus estúpidos! Arrumem já esta desordem ou corto-lhes o pescoço.
O homem não estava mesmo brincando. Um dos garotos mostrou-lhe a língua e recebeu uma bofetada sonora. Os outros começaram a gritar e correram para onde estava o pastor que veio em defesa dos pupilos. Quando chegou ao balcão, o magrelo deparou-se com o Sikh espumando de ódio, brandindo uma adaga de ponta curvada. Achei que o pastor seria estripado num só golpe, mas o covarde tinha raciocínio ligeiro. Mal topou com o tubarão e foi logo perguntando onde era o banheiro. Dei-lhe a direção e o palerma sumiu no corredor. As crianças correram atrás, mas o pastor já se trancara no sanitário.
O clima estava realmente pesado lá dentro e do lado de fora a chuva caia como cascata ruidosa. Mal dava para escutar a gritaria dos pirralhos a esmurrar a porta do WC.
O casal de velhos saiu de trás da prateleira dos dramas, visivelmente assustado. O indiano guardou a adaga, mas não arredou pé. Os velhos entre - olharam-se e pediram que ligasse a tevê, pois queriam saber do temporal. O helicóptero do canal de notícias já sobrevoava a cidade. As imagens eram impressionantes com o rio avançando sobre as ruas, engolindo automóveis e árvores. Há poucos metros da 46, as pessoas estavam presas nos andares altos, os mais baixos já estavam sob as águas barracentas. A Rua 46 distava apenas algumas quadras da loja. Pensei em comunicar a todos que iria fechar a locadora e que devíamos encontrar um local protegido, quando a senhora aproximou-se do balcão e gritou para o indiano: não gostei do que você fez com aquele menino, se não fosse a chuva chamaríamos a polícia. Quem você pensa que é seu estrangeiro? As leis de imigração são mesmo frouxas neste país. O velho tentava conter o arroubo da esposa, mas ela não parecia satisfeita, brandindo a bolsa bem próxima do rosto do indiano. De repente o homem irritou-se, sacou da adaga e, de um só golpe abriu o pescoço da mulher, de fora a fora; a vítima desmoronou numa poça de sangue. Ficamos todos paralisados e se algum grito houve, a tempestade tratou de abafá-lo.
Os garotos, já cansados de pedir socorro ao pastor, haviam sido atraídos pela discussão. Tão logo se depararam com a cena calaram-se por completo. Estávamos todos em torno do cadáver e o sangue, que não parava de correr, alcançava nossos pés. O indiano, todavia, permanecia impávido, limpando a lâmina da adaga na túnica laranja. Esperava que o assassino deixasse o local, mas não parecia ser esta a sua intenção. Comecei a desconfiar que seríamos os próximos.
Uma lágrima solitária escorreu pelo rosto trêmulo do marido. As crianças também se refizeram do primeiro impacto e aproximaram-se do ancião. Duas delas abaixaram-se em torno do cadáver. Fiquei estarrecido. Enquanto alguns garotos limpavam os bolsos do velho, outros dois saqueavam o cadáver. O tubarão deu uma gargalhada apavorante, depois soltou alguma imprecação na sua língua que os garotos assustados pareceram entender de pronto, depositando o resultado do saque sobre o balcão.
A tevê saíra do ar e a água começava a entrar sob a porta da loja. O indiano mandou que todos fossem para o banheiro. Lembrei que o pastor devia estar por lá, trancafiado, com medo e não nos deixaria entrar. As coisas estavam complicadas, mas ficariam piores.
A porta da locadora abriu-se num solavanco. Um sujeito encharcado, arfante e que mal conseguia ficar em pé veio completar aquela situação insólita. Quando recobrou o fôlego perguntou: ainda estão precisando de balconista?
Pensei em pedir por socorro, mas seria uma estupidez, o indiano teve mais presença de espírito e disse: volte na segunda, o dono saiu.
O rapaz ficou em silêncio por alguns instantes, baixou a cabeça e percebeu o sangue que já embebia todo o piso. Então, falou assustado: a água está subindo, acho melhor darmos o fora daqui.
O indiano segurou um dos meninos pelo cabelo e gritou: pare aí ou mato o garoto.
O rapaz ficou atônito, não conseguia entender a situação e insistiu: a água já cobriu a parte baixa da rua. Quase fui engolido por um redemoinho que se formou aqui em frente. Não temos alternativas. Vamos dar o fora e salvar estas crianças!
O indiano soltou o garoto e aproximou-se do estranho. Quando podia alcançá-lo, sacou da adaga e o fez juntar-se a nós. O rapaz estava cansado demais para reagir. Perguntei-lhe o que fazia ali com aquela tempestade.
_ Acabei de chegar à cidade, parei no café aí em frente e estava comendo com meu companheiro de viagem quando vi o cartaz oferecendo emprego, então, resolvi arriscar.
O indiano estava contrafeito com a conversa e empurrou as crianças para a porta do banheiro. Para minha surpresa o pastor já havia escapulido pela basculante e o banheiro estava aberto.
Fomos trancafiados, os nove, naquele cubículo. O ancião, que ficara apoplético desde a morte da mulher, fitou-me com olhar de clemência e, em prantos, pediu: não me deixe morrer, meu jovem. Os fedelhos também começaram a chorar. A energia desligou-se e ficamos numa semi - penumbra, ao som dos choramingues e da chuva que não dava trégua. Fiquei cogitando numa maneira de sairmos daquela prisão, afinal, se não saíssemos a tempo a água invadiria a loja e poderíamos morrer afogados. Tentamos forçar a porta, mas o espaço era exíguo demais para usar as pernas. O único caminho seria aquele que tão sabiamente o pastor usara horas antes, mas seria difícil passarmos pela abertura pequena e ainda rebocarmos o velho em estado de choque. Ademais, a rua atrás da loja, estava embaixo d’água e, se as crianças caíssem, seriam arrastadas pela torrente. Resolvemos, então, que sairíamos pela basculante, diretamente para a laje que cobria a loja. Lá, pelo menos, estaríamos a salvo do caudal.
Conduzimos as crianças, com facilidade, da janela à beirada da laje. Depois lhes pedimos que puxassem o velho enquanto o empurrávamos por baixo o que não foi fácil. Finalmente seguimos o mesmo caminho e ficamos sobre a laje, batidos pela chuva e pelo vento.
A água subira assustadoramente e começara a invadir a loja. O russo devia estar desesperado, pensando numa maneira de salvar seu patrimônio. Tarde demais. E, afinal, onde estaria o assassino com cara de tubarão? Teria escapado, levando os filmes e o dinheiro das vítimas?
Ficamos naquela situação durante quatro horas, pelo menos, até que, de súbito, a chuva parou. O vento nos fazia tremer e imaginei que o ancião não resistiria. Além disto, a água continuava a subir e agora já havia ultrapassado a soleira da porta. Mais uma hora e iria alcançar o nosso refúgio. De repente as crianças começaram a gritar. Imaginei que o indiano nos havia seguido. Qual nada. Um helicóptero da defesa civil estava sobrevoando a área e em poucos minutos encontrou nosso grupo. As crianças e o ancião foram içados. Eu e meu colega de infortúnio ficamos para a segunda viagem, na incerteza de que o resgate voltaria a tempo.
Percebi que meu companheiro estava fraquejando. Faltavam-lhe forças e, se a água nos atingisse, ele não sobreviveria. Além disto, estava com a mão esquerda ferida. Disse-me que havia perfurado a mão com um punhal que encontrara num túnel ou algo assim. Perguntei-lhe se sabia nadar. Respondeu-me que não. Então decidimos arrancar a placa com o nome da locadora, fixada na fachada, antes que a água impedisse nossa estratégia. A placa não era muito grande, nem sabíamos se flutuaria, apenas amarramos algumas cordas onde pudéssemos nos agarrar e esperamos pela ajuda que não veio.
Estava bastante escuro quando a água, finalmente, nos alcançou. Agarramos às amarras e a placa começou a flutuar a deriva. Esperávamos encontrar o cimo de uma árvore ou uma antena para ancorar nossa jangada, mas era quase impossível divisarmos alguma estrutura. O caudal ficava cada vez mais violento, quando, de repente, meu lado da jangada começou a adernar. Terminei engolfado pela torrente e começava a afogar-me quando esbarrei com um enorme volume macio que imaginei ser uma bóia. Agarrei-me a uma extremidade e senti que à minha direita havia outra extremidade idêntica. Fui erguendo o corpo, passando os braços por sobre aquela superfície escorregadia, até me estabilizar e conseguir retomar o fôlego. A torrente também diminuíra e pude perceber que estava a salvo, pelo menos se a chuva não retornasse.
Minha estranha bóia arrastou-me por uma hora, aproximadamente, até uma área mais alta, onde conseguia tocar os pés no chão lamacento. Mesmo assim ainda não era possível enxergar nada, pois a escuridão era total. Lentamente, o vento mudou de quadrante e foi dissipando as nuvens até que um luar tímido desvendou o mistério de minha salvação. Estava amparado por duas botinas pretas de borracha de um enorme Papai Noel inflável que sorria estúpido para a lua da madrugada de natal. Imagine a minha decepção! Salvo por este ícone idiota, após sobreviver a uma inundação, a um psicopata indiano e a uma horda de trombadinhas.
Achei que não faltaria nada para completar aquele quadro patético. Foi então que ao tentar alcançar a rotunda barriga do “bom velhinho”, disparei, por acidente, o chip musical que o boneco trazia no cinturão.
Para encurtar a história, passei às quatro horas seguintes escutando “White Christmas”, até ser, finalmente, resgatado por alegres voluntários da defesa civil dos quais recebi os indefectíveis cumprimentos natalinos, um cobertor, uma taça de champanha e uma perfumada cocha de peru.